perdido na estrada sem placas os postes apagados

A estrada tem uma voz que não cala nunca. É preciso furar atentamente os ouvidos a cada momento para se manter caminhando em linha reta. Caminhando caminhando eu caminho e não tenho idéia de onde vai ser a próxima parada a próxima idéia. Eu tenho cobertores para vender e chinelos de nenê e unhas postiças e hologramas de Jesus Cristo. Tenho que chegar em Alecrim. Tenho que ficar um tempo fora da estrada. Tenho que chegar em Alecrim. A cidade vai ser inundada por uma barragem e foi o último paradeiro do meu pai e nunca mais eu soube dele.

Ensaquei as mercadorias, quase tudo de plástico, em sacolas plásticas dentro das malas pra chuva não foder com tudo. Estou caminhando caminhando na estrada cheio de malas é de noite.

Nossa senhora do caminho cuida bem dessa criatura caminhando no escuro e no meio de tanta água.

Dia na Banguela

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Confundi 8 horas da manhã com com 8 horas da noite. A Vanessa me vira mesmo a cabeça. Perdi o ônibus. Peguei carona com um motorista de linha amigo meu que ia pro outro lado e parei na BR. Pouco capital de giro. Dedão pro ar sempre funciona. Espero com as malas. Pelo menos não chove.

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O Bandeirinha tem 20 anos de idade, um pai um irmão e um avô caminhoneiros, e dirige uma carreta de nove toneladas e meia. Ele às vezes dirige por dezenas de horas seguidas, vai e volta de São Paulo.
No parachoque, um painel eletrônico que passa mensagens. Amantes da Lua. Enquanto alguns dormem, os loucos fazem o Brasil funcionar. Segui meu sonho para o orgulho do meu pai e desespero da minha mãe. Ele tem os olhos cansados e a pele queimada. Eu ali, cheio de malas na estrada e foi ele que parou o seu caminhão.

Pra onde tu tá indo?

Santa Rosa.

Bãi, é longe. Fim do dia eu paro em Três Passos, que é caminho. E ainda tenho duas paradas pra descarregar.

Fechou, vamo. – Falo começando a subir minha bagagem.

E tu tá de mudança? – ele pergunta apontando para as malas e sacolas.

Não. É que eu to indo pra Alecrim, tirar umas fotos, fazer uns desenhos, vender uns livros.

Ah tá.

PDSC4488desenhando no caminhão

Durmo sacolejando boa parte da viagem. Em duas fazendas diferentes eu desço do caminhão para abrir e/ou fechar uma porteira, e ainda ajudo a descarregar os sacos de sal. Cada saco pesa 20 kilos. Foram uns 50 em uma e mais uns 100 em outra. Os porcos nas duas fazendas são enormes. Porcas imensas amamentando porquinhos em cercas de grade, mordendo a grade, uma do lado da outra na lama. Para os fazendeiros aquele é um ensolarado dia de trabalho. Para o caminhoneiro, que só tem 20 anos, é o retorno de sua jornada semanal de quase 24 horas dirigindo sem parar.

Os olhos dos porcos eram assustadoramente humanos, os olhos dos fazendeiros levemente desumanos, os meus. Fiz uns desenhos no caminhão.

PDSC4532 cópia Depois de horas de carona, inclusive atravessando o rio Uruguai com o caminhão em uma balsa, desço em Três Corações, em um posto de beira de estrada onde passam vários caminhões e carros em geral. Lá, consigo pegar carona com o Seu Sady Turco, um senhor sírio libanês de idade, muito falante, que faz questão de me deixar no destacamento da Brigada Militar em Santa Rosa.

Agradeço efusivamente, e digo que me deixar na rodoviária vai ser bom, próximo dali deve ter uma pousada barata, e já confiro os ônibus de amanhã para Alecrim. Já estou ficando nervoso quando consigo convencer ele, que pareceu mais ou menos convencido pela minha resposta quando perguntou o porque de tantas malas (-sou artista, vou pra Alecrim).

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Agradeço o Seu Sady Turco, estou em Santa Rosa e faz um frio de Lascar. Se tudo der certo, amanhã chego em Alecrim.

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O Sol raiou e eu só pensava em sair do vermelho no Neco. Cruzei as águas fétidas e fui falar com o Alemão, em Guaíba. Ele disse que tá fraco o movimento. Muitos colegas concentrados em uma casinha de madeira, “Centro Popular de Compras”. Ali consegui vender 22 cobertores em duas tacadas. Pá, pum. Mas, como dita a desventura somada ao desespero, os 22 saíram a quase preço de custo pra largar o fiado.
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As pessoas caminhavam com um sorriso estranho no rosto. Parecia que a gente na praça tinha toda acordado ao mesmo tempo, braba e feliz,  de um mesmo sonho. 7 a 1 da Alemanha. Não faz sentido, não dá nem pra ficar triste. Como disse o goleiro da seleção, “Como explicar o inexplicável?”. Que bom que eu não investi nas bandeirinhas. PDSC4632 PDSC4629A água da chuva a água o rio Guaiba a água do rio Uruguai, que só vai e só vai e só vai. A ilha que é a Ciudadeleste. A gripe, a febre, as malas molhadas. E os cobertores. Amigos no bar dando risada e me dizendo que dá pra doar isso tudo pros alagados. Me dá vontade de brigar, mas lembro no tanto de trabalho que tenho amanhã, e que antes disso vou dormir com a Vanessa. Tomando chá, fazendo fumaça, enrolados em mil cobertores. PDSC4652 cópiaAqui é bom. Tem a Vanessa,  tem o Neco’s e alguns amigos de vários carnavais. Mas vou pegar a estrada de novo. O que eu digo: vou vender mercadorias. Mas tenho um destino e um objetivo certos. O destino: Alecrim. O objetivo: talvez encontrar meu pai. PDSC4661 (1) PDSC4693

salvo pela bergamota

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Não deu outra: chuva fininha na cabeça e uma semana de cama.
Jogado e demolido, fiquei imprestável. Saí pra vender nenhum dia, e além disso contraí outra dívida no Neco.
A Vanessa me cuidava entre um turno de trabalho e outro. À noite ela chegava com gengibre e me seduzia para roubar bergamotas da vizinha. Entre mimos e cítricos, me recuperava devagarinho da febre de corpo ardente
de dor no cropo da dor de dente cabeça pescoço orelha.
Posso dizer que a Vanessa me salvou mais uma vez, ela e as bergamotas roubadas.

IMG_1286 bergamota caixeiro

é mundial

Cheguei em Porto Alegre depois de dias que pareceram meses entre estrada e cidades pequenas.  Chovia uma chuva fina e fazia um dia cinza, branco. Encontrei a Vanessa, ela tava me esperando na casa dela, foi aquela alegria.
Passei três dias internado lá, comendo dormindo e vivendo bem até demais. Ela sabe o que o véio gosta.

Acordei num pulo, outro dia cinza. Peguei minha mala e fui pro atrolho de gente em frente ao estádio da Copa do Mundo. Assim que saí de casa tive câimbra e repuxo no pescoço. O passo arrastado, que trampo lindo.
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A Vânia disse que tinha a Melhor Caneta do Mundo e me emprestou. Começei a desenhar ela, mas chuva não deixou terminar. Melhor assim, o desenho tava ficando péssimo. Mais um papelzinho pra reciclagem.

A Vânia que vendia chapéus me perguntou o que eu vendia e me convidou pra correr com ela quando a kombi branca da SMIC aparecesse.
O Éder que vendia cerveja me perguntou quanto era o cobertor, e disse qua pagava menos da metade nos camelô do centro.
Um espetinho de carne custava 5 e o de queijo também.

Chovia e choveu muito, aquela chuvinha fina e cansativa. Eu carregava uma mala cheia de cobertores estampados com animais,
autênticas peles de zebra brasileira, onças verdes, isqueiros de mulher pelada
tetas de silicone, ralos japoneses, chinelos de bebê
guarda-chuvas de cabeça, pedrinhas pra colar nas unhas.E quando começou a vender — 5 isqueiros a 2 cada, na ligeira…
E justo que comecei a vender, já vi o colete verde-limão-brilhante se aproximando, escoltado por bonés brancos em coturnos lustrosos. Coletes à prova de bala, nome de velcro.
– Que que é isso? Te manda daqui. Se tu preferir, eles te ajudam a carregar essa mala, falou o inspetor, rindo e apontando pros policiais.

O Matheus chegou bem na hora, pediu mais um isqueiro e eu queria dar de presente. Voltou o inspetor – Tu inda tá aqui vendendo na minha cara?

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Chovia e choveu muito. Uma chuva fina e cansativa. Além disso, polícia e/ou militares em peso. Camburões, viaturas, caminhões, cavalaria, de bici e a pé.

Eu assistia a um show oficial da escola de samba oficial, em um trio elétrico parado – tudo muito bem ensaiado, todo mundo bem vestido ali em cima, e a mulherada no meio da galera, quando eu tive a impressão de que quase todas as pessoas que estavam ali ou eram policiais militares ou parentes de policiais, amigos de policiais, cachorros de policiais, disfarçados ou à paisana, além dos sujeitos de uniforme, dos turistas gringos, dos vendedores e dos ricos locais.
Não era exatamente o paraíso pra comércios, embriaguez ou diversão de qualquer tipo, mesmo pra quem tem alvará.

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– A moral é que o homem pisou na bola, Jesus veio e PÃ resolve a situação. Se acredita em Jesus fica tudo bem, certo?
Gostei de você, obrigado, valeu!

Falou um pregador bilíngue português-alemão com sotaque carioca, uma das pessoas mais simpáticas com quem eu troquei idéia hoje. Ele me deu esse folder no meio da chuva, sem nem perguntar se eu falava ou não alemão.

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O sujeito grisalho de casaco da prefeitura que veio me falar pra recolher as minhas coisas ficou tão impressionado que não conseguia conter o riso, cercado de policiais para garantir o cumprimento da sua ordem.
– Ninguém pode vender nada disso que tu tá vendendo em lugar nenhum da cidade se não tiver alvará. E muito menos tu aqui.

Tive que sair bem na hora em que os gringos estavam saindo do estádio. Mas tudo bem, vi pouca gente conseguindo vender. E além do que, chovia aquela chuva fina que molha tudo e gruda na pele.

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Hora de ir embora, engarrafamento, o ônibus chega tarde e lotado. A chuva fina hora parava hora continuava, fazendo as pessoas abrirem e fecharem os guarda-chuvas e molhando tudo e todos constantemente.

Balançando exausto no ônibus de volta pra Vanessa, eu ouço um homem gordo que eu nunca tinha visto antes dizer que todas as seleções estão jogando muito mal e ainda temos 13 dias de Mundial.
Acho que vou ficar gripado.

tentacao

 

Tentação, sou atraído por essa palavra piscante.

Piscando… acende, apaga, acende, apaga, acende, ascende.

Tentação: resistir ou sucumbir?

Largar tudo, mas como consequência obrigatória um recomeço.

Tentar… ação… que fosso enorme existe nessa junção. Atravessar o rio, a ponte, a fronteira. Atravessar a barreira da língua, dos códigos culturais, das relações identitárias. Agir conforme o desejo efêmero.

Eu aqui no coração das Missões, nesse solo sagrado guarani, sem saber se existe tradução para tentação. Como seria tentação em guarani? Os jesuítas certamente conheceram essa palavra. Se não conheceram, fabricaram.

Aviso aos Viajantes

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Vim dormir na antiga pensão Avenida, em Santa Rosa, por recomendação do meu tio. Um frio de rachar, e o chão rangia como se eu estivesse acompanhado.
Tiro os sapatos, troco o curativo e abro o armário pra tirar os travesseiros. Qual não foi minha surpresa.
Além dos travesseiros com perfume de décadas, o móvel continha presenças ancestrais: de avisos poéticos a recados depravados. Alguns deles pareciam endereçados pra mim, mas o espanto maior veio na sequencia. Fiquei pálido.

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Recados puídos, de 1971, 1974, 83, 99, à caneta bic, lápis, canetinha, e um deles, quase desaparecido, pula na minha cara. Justo quando eu fui deixar meu traço, vi o pixo que furou meus olhos.
Meu próprio pai. Décio, 10/01/71.
Ele foi grande desenhista, mas dessa vez ele se deteve ao clássico “estive aqui”. A minha mão segura uma canetinha paraguaya e, num piscar de olhos, eu vejo a cena desde o lado de fora da janela. Enxergo eu y mi viejo na exata mesma posição. As duas figuras se confundem.
Pisco os olhos outra vez e caio de costas na cama. Foi um dia exaustivo. Melhor tentar sonhar, esquecer o prejú da semana, ler o que a Vanessa me escreve. Se é que escreve.

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Aos Viajantes Amigos
O Proprietário deste hotel fode a Moda Suiça – com o cu pra não gastar a pissa.
O proprietário é corno não fudi a mulher dele porque é um bofe.
Eliete Martins Medeiros… M11, PR8, P3, PC12…

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TODO O VIAJANTE DE LABORATÓRIO É
CHEIO E PALHAÇO METIDO A DOUTOR.
aviso.di.amico.per.vivere.condente.per-il.vostro qullo-bisogno un gazzo bene duro
“Purgoleite”

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Deixei meu rastro na manhã seguinte.

Adoro Santa Rosa. Aqui tenho o prazer de encontrar gente fina, elegante. Trocar um abraço apertado como há tempos não recebia. Dá até pena de sair da cidade.

 


calçadão de Getúlio

getulio

Não deu tempo de me despedir da Dona Jurema, onde fiquei nessas duas últimas noites. Foi lá que comi o melhor agnolini de frango dos últimos tempos, mas tive que sair às pressas…

não vendi nada hoje

O calçadão de Getúlio Vargas passou o dia todo vazio. Poucas pessoas e pouquíssimos compradores. Brecada latido castejano, dois hermanos estacionam a kombi bem em frente do meu mostruário. Vinham de Mendoza e estavam a caminho de Porto Alegre para assistir o último jogo classificatório da Argentina. Carregavam dois poodles brancos e a kombi cheinha de artesanias. “Bá… hippie também gosta de futebol?”

Nem assim conseguimos chamar a atenção dos passantes. Pelo menos conheci uma guria bacana, ela tava de férias na cidade e me contou que não suportava os dias de Copa da capital. Disse que tava a ponto de perder todas as amizades, que era impossível sair com as colegas. “As gurias parecem umas putas, só querem sair para ficar dando em cima de gringo na Cidade Baixa.

Pela primeira vez me lembrei da Copa e agora tá certo! Vou montar a minha banca segunda na frente do Beira-Rio. E vou levar todos os meus desenhos de cachoeiras.

hippie

bilhete errado


A Ánxela do guichê da rodofiária me vendeu um bilhete falando que eu podia descer no trevo, mas eu não pude. Depois do bate-boca, o motorista me deixou na estação rodoviária de Nova Cabrais me dizendo que era o trevo. Escuro frio e chovia e eu tinha que equilibrar uma sacola na cabeça (a alça arrebentou com o peso e os braços estavam ocupados com malas mochila sacolas).
Fui pedir carona para um casal que saía de carro com seu filho pequeno para longe daquela inóspita rodoviária/lanchonete, e um lindo daschund o famoso cachorro salsichinha mijou na minha mala.
Perco a noção das horas com as pessoas me encarando ali dentro enquanto como dois croquetes.

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Meio da noite, peguei carona com um sujeito que me pediu dinheiro quando a gente tava passando em frente ao município de Enforcados. O lugar tem esse nome por que ali tem uma figueira de centenas de anos onde um monte de gente se enforca até hoje. Quando ofereci um cobertor como pagamento, ele me disse que o filho dele que trabalha na fronteira  tinha comprado uns quantos cobertor daqueles e tinha sobrado uns quinze na casa dele, e ele não tinha mais pra quem vender.